Um Deus Crucificado - Sexta-feira Santa
- BLOG O CAMINHO
- 18 de abr.
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O que está acontecendo hoje? Onde está Aquele a quem confiamos a nossa vida? Quem sabe essas sejam perguntas que pairavam no coração dos apóstolos diante da condenação do Justo Inocente. É Sexta-feira Santa. Estamos diante do intenso drama da morte de Cristo no Calvário. Na Cena Domini, os ritos que Jesus realizou hoje se cumprem na dureza da Cruz. Ao entregar-se incondicionalmente por nós, Ele consuma a sua vida em um ato de total entrega nos braços do Pai, restituindo-nos a amizade que outrora havíamos perdido. Os apóstolos ainda não compreendiam. Estão em crise. Ainda mais: se acovardaram diante do escândalo da Cruz. Depois de três anos na escola do Mestre, parece que não aprenderam nada. Ou, quem sabe, se esqueceram. Estão longe do Senhor. O deixaram na solidão. Esses homens que, na voz de Pedro, professaram a fé no Filho de Deus — “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt 16,16) —, esses que declararam amor incondicional ao Mestre e juraram segui-lo até a morte — “Darei a minha vida por ti!” (Jo 13,37) —, agora se veem frustrados. Aquele homem que outrora prometera que se sentariam em doze tronos para julgar as tribos de Israel… Onde está essa promessa? “Pedro, tomando então a palavra, disse: ‘Eis que nós deixamos tudo e te seguimos. O que é que vamos receber?’ Disse-lhe Jesus: ‘Em verdade vos digo que, quando as coisas forem renovadas, e o Filho do Homem se assentar no seu trono de glória, também vós, que me seguistes, vos sentareis em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel. E todo aquele que tiver deixado casas, irmãos, irmãs, pai, mãe, filhos ou terras, por causa do meu nome, receberá muito mais e herdará a vida eterna’” (Mt 19,27-29).
Aquele que prometeu o cêntuplo está morto. Decepcionados, pois Aquele que dera sentido às suas vidas agora está morto. Aquele que passou fazendo o bem, curando enfermos, purificando leprosos, expulsando demônios, restituindo a vista aos cegos, fazendo os mudos falarem e os surdos ouvirem, Aquele que esperavam que libertasse Israel do domínio romano… até mesmo Aquele que ressuscitara Lázaro e o filho da viúva de Naim — Ele mesmo agora está morto. Um Deus morto. E pior: morto de forma infame. Crucificado.
O Autor da vida está na Cruz. Foi eliminado do mundo dos vivos, conforme disse o profeta Isaías: “Após detenção e julgamento, foi preso. Dentre os seus contemporâneos, quem se preocupou com o fato de ter sido cortado da terra dos vivos, de ter sido ferido pela transgressão do seu povo? Deram-lhe sepultura com os ímpios, seu túmulo está com os ricos, se bem que não tivesse praticado violência nem houvesse engano em sua boca. Mas Iahweh quis feri-lo, submetê-lo à enfermidade. Mas, se ele oferece a sua vida como sacrifício pelo pecado, certamente verá uma descendência, prolongará os seus dias, e por meio dele o desígnio de Deus triunfará. Após o trabalho fatigante de sua alma, verá a luz e se fartará. Pelo seu conhecimento, o Justo, meu Servo, justificará a muitos e levará sobre si as suas transgressões” (Is 53,8-11). Os apóstolos, após aquela noite da Ceia em que Jesus lhes dá o novo mandamento, sela com eles a Nova Aliança e lava-lhes os pés, dando o exemplo de humildade — mesmo depois de afirmar que veio para “servir e não ser servido”—, agora o abandonam. Aqui estamos, diante da covardia dos apóstolos que abandonaram seu Mestre, mas também diante do Bom Pastor, que dá a vida pelas ovelhas. Este é o sentido maior deste dia: o Deus Crucificado é o Bom Pastor que entrega a sua vida. Ela não foi tirada, mas ofertada. Não é vontade humana, mas entrega total: “Ninguém a tira de mim, mas eu a dou livremente. Tenho poder de entregá-la e poder de retomá-la; esse é o mandamento que recebi do meu Pai” (Jo 10,18). Na noite da Última Ceia, Nosso Senhor havia dito aos seus apóstolos: “Desejei intensamente comer esta Páscoa convosco, antes de padecer” (Lc 22,15). Muito mais do que comer a Páscoa, é como se dissesse: “Desejo, anseio, quero dar a minha vida por vós.” Os apóstolos ouviram. Sabiam do que Jesus falava, mas talvez não quisessem compreender. Assim foi quando, por três vezes, Jesus predisse sua Paixão: eles não entenderam e ignoraram o assunto. Diante da Cruz, apavoraram-se.
Neste dia da Paixão do Senhor, quando voltamos o olhar ao Deus Crucificado, vemos Aquele que rompeu o muro da inimizade. Olhamos para o Corpo de Jesus, para suas chagas, suas feridas, seu lado aberto. Nessas santas feridas temos acesso à eternidade. A lança do soldado transpassa o Coração Sagrado de Jesus: “Um dos soldados transpassou-lhe o lado com a lança, e imediatamente saiu sangue e água” (Jo 19,34).
Assim como Deus escreveu com o próprio dedo as tábuas da Lei: “Quando Ele terminou de falar no monte Sinai, deu a Moisés as duas tábuas da Lei, tábuas de pedra, escritas pelo dedo de Deus” (Ex 31,18), o monte Calvário é agora o novo Sinai, onde a Aliança se renova, não em pedra, mas na própria carne de Jesus, escrita com o mesmo dedo de Deus.
Santo Ambrósio define este dia como Dies Amaritudinis — dia da amargura. Nos momentos mais difíceis da vida de Cristo, no tempo de sua prova, é abandonado por seus discípulos, que perdem a fé e a esperança. Mas é nesse momento de solidão e entrega que Ele dá à sua Igreja os sacramentos. Do sangue e da água que jorram de seu lado nascem o Batismo e a Eucaristia. Pelo Batismo somos enxertados na família divina; pela Eucaristia, Ele se dá como alimento. Assim como em Gênesis 2, Eva nasce do lado de Adão adormecido, a Igreja nasce do lado de Cristo adormecido na morte: a Nova Eva. A Igreja é o Corpo Místico de Cristo. É o poder de um Deus que dorme o sono da morte, um Deus Crucificado. Mas se dessa Cruz nasce a Igreja com os Sacramentos, esse Deus ainda quis nos dar mais. Não nos deixou órfãos, nem deixou sua Esposa desamparada. Ele nos deu Maria. Ao dar Maria como mãe a João, Cristo entrega à Igreja uma Mãe. Uma mãe a quem recorrer, sobretudo nos momentos em que a Igreja é mais atacada. Maria é Mãe da Igreja, mas também é testemunha da Igreja que nasce do lado aberto do seu Amado Filho. Um Deus Crucificado que veio realizar a vontade do Pai e, pela morte na Cruz, trouxe vida e esperança ao mundo.
Finalizo esta reflexão com as palavras do nosso pai-fundador, Padre Gilson Sobreiro, para este dia:
“O corrente adágio popular que diz: ‘Se correr o bicho pega e se ficar o bicho come’, cabe de maneira inequívoca à injusta situação na qual Jesus se encontrava. Seus acusadores o condenariam à morte por ter dito que era o Cristo, o Messias, rei dos judeus, ou por ter dito que era o Filho de Deus. A primeira razão era considerada pelos sacerdotes como blasfêmia; a segunda, como crime político contra César.
O injusto processo havia começado. O grande benfeitor que curara tantos doentes, purificara leprosos, libertara possessos, devolverá a vista aos cegos e fizera os surdos ouvirem, agora era conduzido ao tribunal como malfeitor (cf. Jo 18,31).
Jesus foi introduzido na praça do Pretório, diante do governador romano que entraria para a história e seria lembrado todos os dias no Credo que professamos como aquele que condenou o Filho de Deus: Pilatos.
As vozes maquiavélicas das autoridades surtiram efeito: “Se o soltares, não és amigo do imperador, porque todo o que se faz rei se declara contra o imperador” (Jo 19,12). Pilatos, como até hoje muitos homens corrompidos pelo poder fazem, abriu mão da justiça e da verdade para conservar-se no poder e entregou o Justo à morte (cf. Lc 23,24). A turba, incitada pelas autoridades religiosas judaicas, gritava: “Crucifica-o!”. Mas cala-se por alguns minutos ao verem chegar Aquele que mais tarde seria o símbolo maior dos que creem: a Cruz.
Aquela Cruz, que seria abraçada e osculada pelo Redentor, fendeu a multidão de um lado e de outro, revelando simbolicamente qual seria seu papel ao longo da história: de um lado, os impiedosos sorrirão; de outro, os devotos a venerarão; de um lado, os escarnecedores a cuspirão; de outro, os piedosos se prostrarão. De um lado, será sinal de escândalo; de outro, sinal de vitória.” — Frei Antônio da Paixão de Cristo, pjc.
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