A fonte do amor: Eucaristia - Deus no meio dos homens
- BLOG O CAMINHO
- há 7 dias
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A liturgia de hoje é fundamental para entendermos o mistério que celebramos. E, quando digo “celebramos”, quero, sobretudo, dizer que vivemos, pois a celebração de um mistério é, de modo singular, a atualização do Mistério Pascal de Cristo. Assim, nós, ao celebrarmos este mistério, o vivemos de modo atual. Quer dizer que não é algo que ficou no passado, mas é algo que perdura até a vinda definitiva de Cristo. A afirmação de Santo Agostinho: "fides christianorum resurrectio Christi est", sintetiza o conteúdo da fé do cristão. Isso significa que é no Mistério Pascal de Cristo que está a nossa fé. Deste modo, o cristão não se entende sem a fé no Mistério Pascal. Ao falar da fé do cristão no Mistério Pascal, não estamos falando simplesmente do Domingo da Ressurreição, mas de todo o Mistério Pascal. Aqui, não podemos de modo algum dar um salto para o futuro e ir para o domingo, pois, ao realizarmos isso, perder-se-á a oportunidade de entendermos em que consiste a Páscoa da Igreja.
Neste dia, a Igreja faz memória da Ceia Pascal de Jesus. Portanto, a Eucaristia é essencialmente a Páscoa da Igreja. Nela se realiza o mistério de nossa salvação. Por meio da Ceia Eucarística, Deus permanece no meio dos homens. A fonte do amor agora está em nosso meio. Ao se entregar na Eucaristia, Jesus antecipa a sua entrega na cruz. Essa entrega é uma oferta de amor ao Pai pela salvação da humanidade. Hoje, o Cristo, o Filho Unigênito do Pai, se dá a nós. Não nos oferece algo passageiro, momentâneo ou provisório; oferece a si mesmo. Oh! Que grande dádiva, que grande presente! Pode alguém querer mais que isso? Aquele que esteve no seio da Virgem agora se dá a nós. É, de fato, a fonte do amor, que está não só no meio de nós, mas no centro de nós: em nossa alma, em nosso coração. O que posso mais querer? O que posso mais desejar? Se na Santa Eucaristia Cristo está todo para mim, não deveria também eu estar todo n’Ele? Deus se dá a nós. Ele se entrega no Sacramento do Amor. Por isso, cada gesto, palavra ou ação de Jesus reflete sua entrega em favor dos homens. No capítulo treze de João, é evidente essa entrega de Jesus:
“Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo ao Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim.” (Jo 13,1)
Aqui é importante termos em conta que Jesus é consciente daquilo que está fazendo. Ele não o faz como alguém que não tem ciência do que está por vir. Não. Jesus tem pleno conhecimento da sua missão. O texto bíblico começa dizendo: “Sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo ao Pai.” O verbo usado pelo evangelista é eidō; este verbo tem o sentido de perceber, notar, discernir, conhecer, bem como evoca algo de definitivo. Este algo definitivo é justamente a sua Páscoa, a sua passagem para o Pai. No entanto, antes da sua Páscoa, Jesus quer e deseja permanecer no meio dos seus. Para isto, Ele irá instituir o novo sacramento da Nova e Eterna Aliança. É nova e eterna porque agora é selada, não com o sangue de touros e bodes, como vemos no livro do Êxodo (12,1-14). Esta páscoa será um protótipo da verdadeira e eterna Páscoa. Naquela páscoa, matava-se um cordeiro, que era comido juntos como sinal de solidariedade. Este rito marca a passagem de Deus no meio do seu povo — Deus que vem para salvar o seu povo escravo: “Naquela noite, passarei.” Destarte, Páscoa é: Deus que passou (cf. Ex 12,12.27). No entanto, na nova Páscoa, a Páscoa do Cordeiro Inocente, ela ganha um novo sentido. Jesus passou deste mundo para o Pai, mas, ao mesmo tempo, Ele permanece no meio dos seus. Aqui está a novidade desta Páscoa, e por isso ela é a Nova e Eterna Aliança: “Tomou o pão e, depois de dar graças, partiu-o e disse: ‘Isto é o meu corpo que é dado por vós. Fazei isto em minha memória.’ Do mesmo modo, depois da ceia, tomou também o cálice e disse: ‘Este cálice é a nova aliança em meu sangue. Todas as vezes que dele beberdes, fazei-o em memória de mim’.” (1Cor 11,23-25) Aqui está a novidade. Fazemos memória, mas não é uma memória nostálgica do passado, e nem tão pouco algo que ficou lá no passado. Esta memória é, antes de tudo, atualização de um mistério — o mistério da nossa fé. Ao celebrarmos a Eucaristia, a Igreja atualiza no hoje da nossa vida os mesmos gestos, palavras e ações de Jesus.
Em primeiro lugar, porque foi Ele quem quis. No último ano de sua vida, ao se aproximar da festa — que festa? A festa da Páscoa — assim nos relatam os Evangelhos, Jesus envia dois de seus discípulos a um certo amigo que vivia em Jerusalém para dizer-lhe: “O Mestre diz: Meu tempo está próximo! Em tua casa quero celebrar a Páscoa com os meus discípulos.” (Mt 26,18) Deste modo, sentando-se à mesa, disse: “Tenho desejado ardentemente comer convosco esta Páscoa.” (Lc 22,15) O verbo usado por Jesus é epithyméō. Este verbo não está relacionado a um desejo venéreo, passageiro. Não. Ele é profundo, íntimo, e quer dizer: colocar o coração naquilo que se deseja, aspirar, anelar — revela o sentimento mais íntimo e profundo do coração do Mestre. Doravante, esta será a nova Ceia Pascal dos crentes: a Eucaristia. Nela, comemos a carne e bebemos o sangue do Cordeiro Imolado. É por meio desta nova Páscoa que toda a humanidade se vê livre da escravidão do pecado e da morte, porque n’Ela encontramos a vida, n’Ela encontramos o penhor da nossa salvação, n’Ela encontramos o Cristo — o Pão Vivo descido dos Céus — não mais aquele pão que nossos pais comeram no deserto e tiveram fome. Esse Pão é o pão que “nos alimenta, nos dá vida e coragem” — este pão é o Corpo Santo do Filho Unigênito do Pai.
Na Ceia Pascal, Jesus torna realidade o que era figura no Antigo Testamento. Ao dar à Igreja o Cálice da Nova e Eterna Aliança, Nosso Senhor não diz que é um símbolo, ou seja, não é algo figurativo, mas é real: “Isto é o meu Corpo, isto é o meu Sangue” (Mt 26,26-28; Mc 14,22-24; Lc 22,19-20), e que Paulo vai repetir fidedignamente em (1 Cor 11,23-25). Ou seja, o que era figura agora se torna realidade: é o próprio Cristo que se dá a nós. Na iminência de sua Paixão, nesta ceia, Jesus institui o sacramento do seu amor. Tudo isso se dá em um cenáculo: lugar da ceia, lugar do encontro, lugar da intimidade, lugar do recolhimento, lugar do amor. É neste ambiente que também nós somos confrontados por Cristo. Jesus não somente institui o Sacramento da Nova e Eterna Aliança, mas também nos dá um novo mandamento. No entanto, para viver este novo mandamento é preciso descer, reclinar-se, abaixar-se para lavar os pés. Isso significa que, para fazer parte desta Nova Aliança, selada com o Sangue Precioso de Cristo, é necessário imitá-lo. Jesus se reclina para lavar os pés dos seus apóstolos. Creio que, para eles, deve ter sido um gesto impactante, pois na cultura semítica era o servo que devia lavar os pés do seu senhor. Mas em Jesus tudo é novo: é Ele quem lava os pés. Ele, o Senhor, agora Servo, fazendo dos seus apóstolos “senhores”. Que escândalo! Por isso Pedro se escandaliza: “Veio, então, Simão Pedro, que lhe disse: ‘Senhor, tu, lavar-me os pés?’ Respondeu-lhe Jesus: ‘O que estou fazendo não o sabes agora; passadas estas coisas, porém, tu o compreenderás’. Disse-lhe Pedro: ‘Jamais me lavarás os pés!’” (Jo 13,6-8). É o Senhor que desce, por isso Pedro se escandaliza. Isso é grande demais para ele. Mas, de fato, mais tarde ele compreenderá, porque irá realizar o mesmo pela Igreja. Essa é a maneira que Deus salva a humanidade: servindo. Na Eucaristia, Jesus serve de alimento para os cristãos, ou seja, Ele se dá a nós. Na Cruz, Ele se entrega como servo sofredor. Temos a tendência de achar que estamos servindo a Deus, quando, na verdade, nós é que somos servidos por Ele, porque Ele nos amou primeiro. Meu Deus! Que escândalo de amor! Muitas vezes achamos que já fizemos muito para Deus, quando, na verdade, nada fizemos. Porque muitas vezes somos infiéis e, como Judas, mesquinhos, quando na verdade deveríamos dizer como São Francisco: “Recomecemos, irmãos, porque até agora pouco ou nada fizemos”. O gesto de Jesus deve nos atingir de forma abissal. Primeiro, porque nos chama a realizar o mesmo: “Depois que lhes lavou os pés, retomou o seu manto, voltou à mesa e lhes disse: ‘Compreendeis o que vos fiz? Vós me chamais de Mestre e Senhor e dizeis bem, pois eu o sou. Se, portanto, eu, o Mestre e o Senhor, vos lavei os pés, também deveis lavar-vos os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz, também vós o façais.’” (Jo 13,12-15).
Segundo, porque tal gesto nos identifica com Cristo, quando Ele diz: “Dei-vos o exemplo”. O exemplo de Cristo deve nos impulsionar. Somos cristãos quando de fato nos configuramos ao Cristo. Um terceiro aspecto: porque tal imitação carrega em si uma Bem-aventurança: “Se compreenderdes isso e o praticardes, felizes sereis.” O cristão é feliz quando vive a partir do Cristo, quando, em sua vida, é capaz de tornar viva a vida de Cristo. O serviço nos coloca em atitude de êxodo — saímos de nós mesmos para irmos ao encontro do Cristo que se encontra nos nossos irmãos e irmãs, sobretudo os mais pobres e sofredores. Judas experimentou tudo isso, foi extremamente amado, se alimentou do Corpo do Senhor, porém já havia se fechado no seu rancor e não quis voltar atrás. Tudo poderia ter sido diferente se Judas tivesse aceitado a proposta de Jesus. Mas não: mesmo estando com Ele, tomando o Corpo do Senhor, vendo a atitude humilde e serviçal de Jesus, ainda diante de todo esse testemunho, não quis. Outro aspecto fundamental deste primeiro dia do Tríduo é que a Páscoa que celebramos não é somente a Páscoa de Cristo. Ela é também a Páscoa da Igreja, é a nossa Páscoa. O Cristo-Cabeça dá ao seu Corpo Místico a ordem de celebrar. Ele que disse: “E tomou um pão, deu graças, partiu e distribuiu-o a eles, dizendo: ‘Isto é o meu corpo que é dado por vós. Fazei isto em minha memória’. E, depois de comer, fez o mesmo com o cálice, dizendo: ‘Este cálice é a Nova Aliança em meu sangue, que é derramado em favor de vós.’” (Lc 22,19-20)
Não é somente mais o Cristo-Cabeça, ou seja, o Cristo Histórico, que disse pela primeira vez naquele cenáculo. Agora, quem diz é o Cristo total — Cabeça e Corpo — é cada um de nós, é o “eu” da Igreja unido ao “eu” de Cristo, que oferece a si mesmo como sacrifício de suave odor. Deus no meio do seu povo, Deus no meio da sua Igreja, Deus conosco. O ato de Cristo em favor da sua Igreja e pela sua Igreja é um ato de serviço, entrega e cuidado. Ele serve a sua esposa, a Igreja, se entrega por ela e, ao mesmo tempo, a guarda, porque: “as portas do inferno jamais prevalecerão sobre ela.” (Mt 16,18) É a promessa do Esposo, é o cuidado amoroso que o Esposo tem por sua esposa, sendo capaz de se sacrificar por ela.
Por fim, nesta Última Ceia, na iminência de sua Paixão, outro dom de Cristo dado à sua Igreja é o sacerdócio. Sem sacerdócio, a Igreja não tem Eucaristia; bem como, sem Eucaristia, não há sacerdócio. Sacerdócio e Eucaristia estão, de certo modo, ligados: não se pode separar. Estão unidos como os membros ao corpo. Assim como não existe a Cruz sem o Cristo, nem tão pouco o Cristo sem Cruz, estão ambos intrinsecamente ligados. Somos, de todos, os mais felizes. É neste contexto de Páscoa que está a Bem-aventurança do cristão. Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote, pela sua Paixão, Morte e Ressurreição, dá-nos a vida nova, nos dá um novo mandamento, serve os seus, nos dá um Novo e Eterno Sacramento, e ainda mais: o sacerdócio. Que graça! Que grande tesouro! Que belo ter tudo isso em um só lugar. Assim, nas palavras do sacerdote antes da consagração, vemos não somente com os olhos da carne, mas, com a fé, o coração agradecido de nosso Senhor Jesus Cristo diante do Pai. Não nos resta senão pedir a Cristo a mesma graça: um coração agradecido que seja capaz de perceber o quanto somos amados, o quanto esse Deus é apaixonado por nós.
Neste dia, é oportuno que nós, cristãos, dobremos os joelhos — mas, sobretudo, o coração — primeiro em adoração ao Senhor que tanto nos amou; depois, para rezar pelos nossos sacerdotes, para que sejam “santos e irrepreensíveis no amor”; que cada sacerdote possa servir e amar a Igreja como Cristo a amou, se entregando por ela. Que nossa oração fervorosa seja bálsamo na vida de tantos sacerdotes, de modo particular, aqueles que se encontram desanimados ou que já não veem a vocação como um dom, mas como um fardo a ser carregado. Que Deus, na sua infinita bondade, conceda à sua Igreja santos e sábios sacerdotes. Que a nossa oração alimente a alma e o coração de nossos sacerdotes, para que renovem a sua pertença ao Corpo Místico de Cristo. Queremos também, nesta Quinta-feira Santa, pedir ao Senhor que renove o nosso compromisso de servir e amar, que sejamos cristãos não somente de nome, mas de fato. Que a nossa vida seja uma perene recordação dos mistérios que celebramos.
Permaneçamos na contemplação destes grandes mistérios. Mesmo que muito possamos imaginar, nunca chegaremos a compreender tudo o que o Pai nos deu em seu Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo. Assim como afirma Santo Inácio de Antioquia: “É remédio de imortalidade, antídoto para não morrer, mas para viver em Jesus Cristo para sempre.” Não somos dignos de tanto amor, cuidado, carinho e ternura de Deus. Busquemos tenazmente retribuir ao “Senhor Deus por tudo aquilo que Ele fez em meu favor”, embora precisemos da sua ajuda, como nos afirma Bento XVI: “No começo não estão as nossas ações, a nossa capacidade moral. O cristianismo é antes de tudo dom: Deus doa-se a nós, não dá algo, mas doa-se a si mesmo. Por isso, a ação principal do ser cristão é a Eucaristia: a gratidão por termos sido gratificados, a alegria pela vida nova que Ele nos dá.”
Que este início do nosso Tríduo Pascal inspire os nossos corações para o amor de Deus. Que sejamos cristãos eucaristizados. Finalizo esta reflexão com as palavras de nosso Pai-fundador, Padre Gilson Sobreiro, para esta Quinta-feira Santa:
“Escreve o Papa Bento XVI, no seu segundo livro sobre Jesus de Nazaré, que o essencial da ceia de despedida que Jesus celebrou não foi a Páscoa antiga, mas a novidade que Jesus realizou neste contexto. Essa ceia era a sua Páscoa.
Diante da negação da generosa oferta que Jesus fizera do Reino de Deus, só Lhe restaria o caminho da expiação vicária, isto é, tomar sobre si os pecados da humanidade para então poder salvá-la. Isto é precisamente o Novo Culto que Ele institui na Última Ceia. É esse o sentido que Jesus evoca ao dizer: ‘Isto é o meu corpo que vai ser entregue por vós. Este é o cálice do meu sangue que será derramado por vós…’ Logo após essas palavras, Ele pede: ‘Fazei isto em memória de mim’. O que foi que o Senhor mandou, de concreto, repetir? Pergunta-nos o Papa. Seguramente que não foi a ceia pascal, pois esta já estava regulada pela lei mosaica e era regularmente celebrada em Israel. A ordem de Jesus dizia respeito apenas àquilo que constituía uma novidade na sua ação naquela noite: o partir o pão, a oração de bênção e agradecimento e, com ela, as palavras da transubstanciação. Assim, é verdade que o elemento essencial do novo culto foi dado com as palavras e os gestos de Jesus, mas não ficou ainda preestabelecida uma forma litúrgica definitiva. Esta haveria de desenvolver-se na vida da Igreja, conforme fica claro em 1Cor 11,20-23.34, quando São Paulo nos disse que ela foi dissociada da refeição normal, e em At 20,7, quando São Lucas nos diz que ela era celebrada no primeiro dia da semana.”
“A Eucaristia, presença salvífica de Jesus na comunidade dos fiéis e seu alimento espiritual, é o que de mais precioso pode ter a Igreja no seu caminho ao longo da história. Assim se explica a cuidadosa atenção que ela sempre reservou ao mistério eucarístico…”
(Ecclesia de Eucharistia, 9)
Ela é o seu mais precioso tesouro. Seu Mysterium fidei! Mistério da fé! Sacramento por excelência do mistério pascal. Por isso é que, em todas as Missas, repetimos sem cessar: Mortem tuam annuntiámus, Domine, et tuam resurrectiónem confitémur, donec vénias. Anunciamos, Senhor, a vossa morte e proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus!” — Frei Antônio da Paixão de Cristo, pjc.
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